Tese da UFSC (PPGRI & NEGPEI) sobre direitos reprodutivos na América Latina vence prêmio nacional
Este texto foi escrito por Ana Paula Lückman (jornalista da UFSC) e publicado no UFSC Notícias. A versão original pode ser acessada aqui.

Alessandra Jungs de Almeida defendeu a tese em 2 de agosto de 2024, no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais. Foto: Divulgação/UFSC
Movimentos feministas organizados no Sul global são capazes de difundir e trabalhar pela internalização de normas sobre direitos reprodutivos, sem depender predominantemente das estruturas e organizações do Norte global. Essa análise, que desafia a literatura clássica de Relações Internacionais, é uma das principais contribuições da tese “Direitos reprodutivos na América Latina: ativismos transnacionais e a evolução das políticas de legalização e criminalização do abordo na Argentina e no Brasil (2010-2022)”, defendida em 2024 pela pesquisadora Alessandra Jungs de Almeida no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGRI/UFSC). O trabalho foi o primeiro colocado no Prêmio Marcos Costa Lima 2025, promovido pela Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI).
Na tese, Alessandra enfatiza a importância de estudar a temática dos direitos reprodutivos sob o ponto de vista do Sul global, não apenas geograficamente, mas a partir de uma posição política e identitária. “Fazer uma pesquisa com um olhar comprometido com o feminismo latino-americano produz uma forma distinta de fazer pesquisa, um olhar que tem também um compromisso político com a realidade vivida”, considera. Isso, ressalta, levando-se em conta as suas disputas históricas travadas no âmbito do feminismo, “entendendo como absurdo o cotidiano das violações de direitos sexuais e reprodutivos, e reconhecendo a experiência concreta de quem vive os impactos da negação desses direitos, como o direito humano de decidir continuar ou não com uma gravidez, e de criar seus filhos em condições dignas”.

Premiação foi anunciada em 23 de julho de 2025. Foto: Divulgação/UFSC
Em sua análise, Alessandra observa que os feminismos latino-americanos, como os do Brasil e da Argentina, foram capazes de fazer circular normas sobre o direito ao aborto na região de forma autônoma, sem a necessidade de pressionar instituições do Norte global, contrariando o que as RI chamam de “efeito bumerangue”. “Esses ativismos não precisaram da Commission on the Status of Women da Organização das Nações Unidas (ONU), nem do que as Relações Internacionais chamam de ‘efeito bumerangue’, que é quando se pressiona instituições ou Estados internacionais, não somente, mas especialmente, do Norte global, para que, por sua vez, pressionem os governos argentino e brasileiro. O que observei foi um movimento autônomo, com capacidade de construir redes, articular estratégias e influenciar políticas públicas e externas a partir da própria região”, descreve.
A metodologia da pesquisa envolveu a combinação de entrevistas com 17 ativistas de organizações e movimentos transnacionais, análise de 770 documentos de fóruns multilaterais – dos quais 249 referem-se a direitos reprodutivos – e análise de discurso de materiais publicados por grupos antiaborto em suas mídias sociais.
Processo político
Apesar da histórica força dos movimentos feministas brasileiro e argentino, a situação dos direitos sexuais e reprodutivos na América Latina ainda é bastante restritiva, com poucas vitórias legais recentes, como no Uruguai (2012), Argentina (2020), Colômbia (2022) e México (2023). Alessandra observa que o crescimento do movimento antidireitos é, paradoxalmente, um sinal de que os movimentos feministas estão tendo impacto positivo na direção da conquista do direito. A pesquisadora argumenta que as feministas estão no caminho certo, trabalhando para enfrentar a desinformação, o estigma e para garantir políticas públicas, além de produzir dados que visibilizam violências estruturais. A autora destaca conquistas importantes como a exclusão da expressão “vida desde a concepção” na Constituição brasileira de 1988 e o direito à interrupção da gravidez em casos de anencefalia, ressaltando a crença na capacidade de mudar o processo político. “Entender que essas leis podem ser mudadas faz também parte do processo. Entrevistei ativistas brasileiras há 40 anos nesta luta. Espero que elas vejam essas mudanças. Eu espero que as gerações atuais, a minha geração, continuem essa luta e conquistemos isso com elas. Nós acertamos, ao meu ver, quando não somos fatalistas e vemos o processo político como possível de ser mudado”, reflete.
O interesse de Alessandra pela temática surgiu do intenso contexto político da década de 2010, marcado pela atuação dos movimentos feministas transnacionais, como o Ni Una Menos, a Greve Internacional de Mulheres (8M) e o movimento Maré Verde pela legalização do aborto, liderado por feministas argentinas. Somou-se a isso a percepção de que esse contexto poderia ser analisado a partir das Relações Internacionais (RI), uma área que, no Brasil, apresentava uma ausência de debates específicos sobre o aborto.

Alessandra Jungs de Almeida. Foto: Divulgação/UFSC
“A partir disso, comecei a observar o potencial da área para analisar esses movimentos transnacionais feministas e também sua relação com a política formal. Comecei a questionar, também em resposta direta às provocações da minha orientadora, professora Mónica Salomón, como o Brasil se posicionava sobre o aborto em fóruns de organismos internacionais, como a ONU; como o movimento da Maré Verde, mesmo tendo origem na Argentina, se capilarizava e se localizava em outras cidades, por meio de uma coordenação transnacionalizada e regional; ou ainda como esses movimentos sociais locais se articulavam com dinâmicas internacionais mais amplas, como as disputas feitas pela Igreja Católica questionando o uso do conceito de gênero”, explica Alessandra. Ela defende que é possível pensar as Relações Internacionais fora dos espaços fechados de governo ou organismos internacionais, “mas também a partir das lutas feitas por diversas pessoas em diferentes cidades, que também estão transnacionalizadas e influindo na política internacional e externa”.
Antifeminismo
Outra análise que Alessandra desenvolve aponta uma expansão do ativismo transnacional contrário ao aborto, que a pesquisadora situa no escopo mais amplo do movimento antifeminista. “Esse movimento se fortalece justamente em resposta aos avanços dos movimentos feministas. Isso é algo que vemos historicamente”, indica. “Por exemplo, em 1973, quando a decisão Roe v. Wade foi aprovada nos Estados Unidos, legalizando o aborto em nível federal, os contramovimentos começaram a se organizar com mais força. Surgem ali as Marchas pela Vida, inicialmente em Washington. E hoje essas marchas estão presentes em diversas cidades do Brasil, da Argentina, do Peru, do México e sempre com o mesmo discurso: defender a vida desde a concepção. Ou seja, é uma reação direta a um avanço legal e político feminista”, descreve. Para a pesquisadora, o crescimento dos grupos conservadores pode ser sinal de que os movimentos feministas estão tendo êxito na divusão e fortalecimento da norma dos direitos sexuais reprodutivos. “O movimento antiaborto se fortalece como reação, o que revela o impacto causado pelos movimentos feministas”.
Alessandra admite ter ficado surpresa com o reconhecimento de sua tese como a melhor da área de Relações Internacionais em 2024: em primeiro lugar, por tratar de um assunto socialmente estigmatizado, como direitos reprodutivos e aborto; em segundo, em função do uso de uma perspectiva feminista e sensível a questões de gênero, o que ainda costuma ser ignorado em muitas áreas do conhecimento, “mas de maneira demarcada nas Relações Internacionais”, enfatiza. “A premiação não é uma conquista só minha: ela também tem um significado para quem vem pesquisando aborto e direitos sexuais e reprodutivos em áreas onde o tema ainda é marginalizado”, finaliza.
Ana Paula Lückman | ana.paula.luckman@ufsc.br
Jornalista da Agecom | UFSC